STJ: Juiz que profere ofensas verbais contra réu é parcial e julgamento é anulado
O uso de palavras desrespeitosas sobre o réu configura nulidade por parcialidade do julgador, mesmo que não tenham sido registradas por escrito no voto proferido. Ainda que nenhum juiz seja axiologicamentre neutro, não se pode negar que o envolvimento emocional com o fato apurado pode interferir na sua imparcialidade, atributo que faz parte do devido processo legal.
Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem em Habeas Corpus para anular um julgamento de apelação proferido em que o Tribunal de Justiça do Paraná manteve a condenação de um homem pelo crime de estupro de vulnerável contra a própria filha.
Veja o acórdão:
HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRONUNCIAMENTO ORAL DO REVISOR E RELATOR PARA O ACÓRDÃO. JULGAMENTO DA APELAÇÃO CRIMINAL DA DEFESA. MANIFESTAÇÃO DESRESPEITOSA, PEJORATIVA E OFENSIVA AO ACUSADO. EXCESSO VERBAL QUE EXORBITA DA MERA FALTA DE URBANIDADE. MALTRATO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. SISTEMA ACUSATÓRIO. FALTA DE IMPARCIALIDADE. HIPÓTESE DE SUSPEIÇÃO. RECONHECIMENTO DA NULIDADE. CONCESSÃO DA ORDEM. ANULAÇÃO DO JULGAMENTO COM RENOVAÇÃO.
Em julgamento de apelação da defesa contra condenação pelo crime do art. 217-A, caput, do Código Penal, o revisor, e relator para o acordão, diante do voo do relator que dera pela absolvição por insuficiência de provas, afirmou, oralmante: “[…] Declarações da vítima, da criança, eu fiquei horrorizado, eu não vi nada em que a vítima pudesse inventar! Uma criança, que foi num período entre seis anos a onze anos, que ela sofreu esses abusos, que ela inventasse qualquer coisa pra denegrir a imagem de um suposto pai, porque nem pai podia ser… Uma pessoa dessas é um animal! Um animal! Um cara desse […] E eu fico lembrando da minha neta, Desembargador Eugênio! Fico lembrando da minha neta! Uma criança de tenra idade, na mão de um porco desse! Não me conformo! Não me conformo! Uma criança desse tipo […] Então, pra abreviar, em razão do tempo, até, eu estou divergindo – me perdoe, Desembargador Gamaliel – mas eu ‘tô’ divergindo, mas eu não tenho como sair daqui… Absolver um animal desse! Esse cara foi um animal! Pra mim, um animal!” .
Mesmo que nenhum juiz seja axiologicamentre neutro, não se pode negar que o envolvimento emocional (subjetivo) do juiz com as partes do processo e com o fato apurado pode interferir na sua imparcialidade, atributo que faz parte do “devido processo legal”, de base constitucional (art. 5°, LIV). Não pode haver o devido processo legal sem a imparcialidade do julgador, cuja falta, se objetivamente positivada, implica nulidade por suspeição (arts. 254, I e 564, I – CPP).
Lei Complementar nº 35/1979, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, arrola como dever do magistrado “tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência” (art. 35, IV).
Na hipótese — e aqui não está em discussão o fato criminoso imputado ao recorrente, em termos de procedência, de improcedência ou de indigência probatória —, e com toda a vênia quer se impõe, as desrespeitosas expressões que lhe foram dirigidas oralmente na sessão de julgamento da apelação exorbitam claramente de uma mera questão de falta de urbanidade, para configurar visível falta de imparcialidade e, portanto, caso de nulidade por suspeição (arts. 564, I e 254,I – CPP).
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto São José) celebrado em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, por ocasião da Conferência especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, aprovada pelo Decreto Legislativo n. 27/1992, no art. 5.1 estipula que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”, e no art. 5.2 estabelece que “ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”.
Na parte em que trata das garantias judiciais, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelece que “toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza” (art. 8.1).
Não consta no voto escrito condutor do acórdão do Tribunal de origem nenhuma ofensa ao réu e, em nenhum momento o revisor utilizou termos pejorativos para denegrir a sua honra. Mas o fato é que ofensas informadas pelo impetrante teriam ocorrido durante a sessão de julgamento, por meio da manifestação oral do revisor que proferiu o voto divergente, já que o relator optara pela absolvição por insuficiência de provas.
Não há nos autos a degravação da manifestação oral do revisor do Tribunal de origem e nem foram juntadas as notas taquigráficas, mas nas informações foi indicado um link eletrônico para o acesso ao arquivo digital da sessão de julgamento. Em diligência junto à Seção da Coordenadoria de Processamento de Feitos de Direito Penal desta Corte Superior foi possível acessar a mídia digital e assistir o vídeo referente ao julgamento do recurso de apelação no Tribunal de origem, realizado na sessão do dia 21/3/2019.
As expressões ofensivas, desrespeitosas e pejorativas do eminente revisor do Tribunal de origem, e Relator para o acórdão, na sessão de julgamento do recurso de apelação, contra a honra o acusado que estava sendo julgado, ainda que não tenham sido registradas em seu voto escrito, senão em manifestação oral, mas induvidosas como fato processual documentado, constituem causa de nulidade absoluta, haja vista que ofendem a garantia constitucional da “imparcialidade”, que deve, como componente do devido processo legal, ser observada em todo e qualquer julgamento em um sistema acusatório.
Concessão do habeas corpus. Declaração de nulidade do julgamento do recurso de apelação pelo Tribunal na origem. Realização de novo julgamento, a tempo e modo, sem a participação do revisor do julgamento de 21/03/2019, cuja imparcialidade fica reconhecida. (STJ – HABEAS CORPUS Nº 718.525 – PR (2022/0013930-0) RELATOR : MINISTRO OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO) – J. 26 de abril de 2022(Data do Julgamento)
No voto, o relator conclui:
“Em suma, as expressões ofensivas, desrespeitosas e pejorativas do ilustre Desembargador revisor do Tribunal de origem, e Relator para o acórdão, na sessão de julgamento do recurso de apelação, contra a honra do jurisdicionado que estava sendo julgado, ainda que não tenham sido registradas em seu voto escrito, senão em manifestação oral, mas induvidosas como fato processual documentado, constituem, na minha avaliação, causa de nulidade absoluta, haja vista que ofendem a garantia constitucional da “imparcialidade”, que deve, como componente do devido processo legal, ser observada em todo e qualquer julgamento em um sistema acusatório. Ante o exposto, por verificar flagrante ofensa à garantia constitucional do “devido processo legal”, concedo o habeas corpus para declarar nulo o julgamento do recurso de apelação pelo Tribunal de origem, devendo ser realizado novo julgamento, a tempo e modo, sem a participação do então Desembargador revisor (acima mencionado), cuja imparcialidade fica reconhecida. É o voto”.
Fonte: Correio Forense / STJ notícias